23/09/2022 - Revista do AviSite: Uso prudente de antibióticos na avicultura
O uso de antibióticos na produção animal em geral, seja na forma terapêutica, seja nas suas outras formas de uso (promoção do crescimento, profilaxia e metafilaxia) tem sido uma constante nas últimas décadas, em todo o mundo. É inegável o papel fundamental, por exemplo, dos antibióticos promotores de crescimento (APC) no desenvolvimento da avicultura mundial, permitindo grandes avanços em desempenho, mesmo diante dos desafios enfrentados no processo produtivo.
Ao mesmo tempo em que a demanda por alimentos de origem animal aumenta no mundo, aumenta também a preocupação da sociedade em geral sobre questões ligadas ao uso de antibióticos, marcadamente sobre a resistência bacteriana aos antimicrobianos. Apesar destas preocupações, ainda carecem de esclarecimento as possíveis relações entre o uso de antibióticos na produção animal e a ocorrência de bactérias com resistência a determinados tipos de antibióticos fora do sistema produtivo, uma vez que as mesmas moléculas ou grupos de moléculas são também utilizadas na medicina humana.
Devido ao aumento na discussão sobre o tema, aumenta também a pressão sobre o setor de produção animal para redução no uso de antibióticos o que, muitas vezes, é interpretado como uma demanda para o banimento do uso destas substâncias, ou seja, produzir sem o uso de antibióticos. De outro ponto, os profissionais que trabalham com o tema, em especial os Médicos Veterinários, temos como premissa da nossa profissão garantir a saúde e bem-estar dos animais que criamos e esta garantia passa, necessariamente, pelo uso de antibióticos para o tratamento de doenças bacterianas quando estas acometem os plantéis. Neste sentido, o caminho adequado para o tema não é simplesmente o não uso de antibióticos, mas, sim, o uso prudente destes.
Antes de mais nada, é preciso estabelecer alguns conceitos importantes sobre as possíveis formas de uso dos antibióticos:
Promoção de crescimento: refere-se ao uso de antibióticos para aumentar a taxa de ganho de peso e/ou a eficiência de utilização do alimento pelos animais. Em geral, caracteriza-se pela utilização prolongada (acima do tempo recomendado para tratamento) de doses baixas de um determinado antibiótico.
Controle ou metafilaxia de doenças: refere-se ao uso de antibióticos em um grupo de animais saudáveis para evitar que este seja contaminado por uma doença infecciosa diagnosticada em outro grupo de animais.
Prevenção ou profilaxia de doenças: refere-se ao uso de antibióticos em animais saudáveis considerados em risco de infecção ou antes do início da doença infecciosa clínica.
Tratamento ou uso terapêutico: refere-se ao uso de antibióticos com o objetivo específico de tratar animais com uma doença infecciosa diagnosticada clinicamente.
A Organização Mundial da Saúde, em seu Guia para Uso em Animais de Produção dos Antibióticos Importantes para Medicina Humana, apresenta quatro recomendações e boas práticas que podem ser aplicadas no sentido de uso prudente:
Redução no volume total de antibióticos utilizados;
Não utilização de antibióticos como promotores de crescimento;
Não utilização de antibióticos de forma preventiva;
Reservar, como última alternativa, o uso de antibióticos criticamente importantes para medicina humana para controle de enfermidades e de antibióticos de altíssima prioridade criticamente importantes para medicina humana para o tratamento de enfermidades.
A própria OMS, no mesmo documento, reconhece que as evidências disponíveis para embasar as recomendações são de baixa (recomendações 1 a 3) e muito baixa (recomendação 4) qualidade. No entanto, do ponto de vista técnico, parecem recomendações sensatas e que podem servir de guia para o estabelecimento de um programa de uso prudente de antibióticos na produção de aves. A União Europeia já havia abolido o uso de APC em 2006 em todo seu território e, em 2018 estendeu esta proibição aos países exportadores para o bloco, com efeito a partir de janeiro de 2022. Nos Estados Unidos, desde 2017, não é possível o registro de APC cuja molécula seja considerada como medicamente importante. No Brasil, foram abolidos os usos como APC de Colistina, em 2016, e de Tilosina, Lincomicina e Tiamulina, em 2020.
Independentemente do direcionamento dado ao programa de uso prudente de antibióticos, seja com foco somente na retirada dos APC, ou mesmo na implantação das demais recomendações citadas, o sucesso do programa depende de uma preparação prévia do sistema produtivo, que, basicamente, está centrada em um programa robusto de Biosseguridade. São vários os pontos que devem ser contemplados no programa de biosseguridade, mas, os seguintes pontos merecem atenção especial: procedimentos de intervalo entre lotes, controle de pragas, programas de vacinação e programas de aditivos via ração.
Especialmente na etapa final da cadeia produtiva (frangos e perus de corte), os procedimentos aplicados durante o intervalo entre lotes têm papel fundamental na redução da pressão de infecção, ou mesmo na prevenção de contaminação do lote subsequente a determinados agentes infecciosos. Independentemente do conjunto de procedimentos adotados, estes devem garantir uma boa limpeza e desinfecção das instalações. Tais procedimentos devem contemplar, também, um tratamento de cama adequado, seja para reutilização da cama no lote subsequente, seja para sua destinação final.
Roedores e insetos (principalmente cascudinhos) são importantes vetores de doenças na avicultura e podem ser responsáveis pela manutenção de agentes infecciosos na granja ou mesmo pela sua disseminação entre granjas. Em função disto, um programa eficiente de controle de pragas deve estar implantado em todas as granjas e, no caso dos cascudinhos, o controle efetivo durante o intervalo entre lotes tem papel fundamental no controle de desafios sanitários, especialmente nos casos de reutilização da cama.
Um programa de vacinação adequado aos desafios sanitários da região deve ser elaborado, considerando também as variações sazonais. Foco especial deve ser dado às doenças imunossupressoras, que podem se apresentar de formas atípicas, favorecendo outros agentes infecciosos e gerando problemas sanitários graves que podem demandar a utilização de antibióticos.
A ação dos APC está basicamente restrita ao trato gastrointestinal, especialmente o intestino. Desta forma, quando da sua retirada, um programa de aditivos com produtos alternativos aos APC deve ser elaborado e implantado com o objetivo de manter ou mesmo melhorar a qualidade ou saúde intestinal. Dentre os principais grupos de produtos alternativos podemos citar os probióticos, prebióticos, simbióticos, fitogênicos (extratos herbais e óleos essenciais), ácidos orgânicos, enzimas, peptídeos antimicrobianos, bacteriófagos, entre outros. A decisão pela utilização de qualquer dos grupos citados ou suas associações deve estar baseada no modo de ação de cada tecnologia e dos desafios presentes no sistema produtivo. Em geral, é necessária a utilização de associações de grupos de aditivos para se obter o melhor resultado no estabelecimento deste programa.
Os pontos abordados nos parágrafos anteriores estão focados nos animais de corte (frangos e perus). No entanto, alguns aspectos relacionados à cadeia anterior (matrizes e incubatório) devem ser considerados neste cenário e vamos discuti-los brevemente na sequência. Não há dúvidas de que os programas de biosseguridade e os procedimentos a eles relacionados na cadeia de matrizes e nos incubatórios são essencialmente mais rigorosos do que nas etapas seguintes e é natural que seja desta forma.
Entre os principais pontos a serem observados na cadeia anterior e avaliados sob o prisma de uma possível redução no uso de antibióticos na etapa de terminação, inclusive a retirada dos APC, temos os programas de vacinação das matrizes, os procedimentos de coleta e desinfecção de ovos, qualidade da cama e programas preventivos utilizados via ração com foco em qualidade intestinal.
O objetivo principal de um programa de vacinação é a proteção do animal ou grupo de animais vacinados. Assim, os desafios regionais devem ser avaliados na elaboração do programa para as reprodutoras. No entanto, devido à característica fisiológica de transferência de anticorpos para a progênie através do ovo, é importante também avaliar os desafios que esta progênie pode enfrentar no campo após a eclosão e considerá-los no programa de vacinação. Especial atenção deve ser dada às doenças imunossupressoras, marcadamente a doença de Gumboro e a Anemia Infecciosa das Galinhas que podem comprometer a saúde da progênie logo nos primeiros dias de vida.
A presença de contaminação bacteriana na casca do ovo pode representar um risco adicional para a progênie nos primeiros dias de vida. Em função disto, a frequência adequada de coleta de ovos deve ser observada bem como a separação e tratativas distintas para ovos sujos e ovos de cama em relação aos ovos limpos de ninho. Dependendo da carga de matéria orgânica presente na casca, é recomendado o descarte dos ovos sob pena de comprometimento da qualidade microbiológica dos demais ovos a serem incubados. Da mesma forma, o procedimento de desinfecção dos ovos na granja deve garantir a adequada redução da sua carga microbiológica. Um ponto crítico para esta eficiência é o tempo decorrido entre a coleta e a desinfecção dos ovos, que deve ser o menor possível. No processo de incubação, uma estratégia interessante pode ser o processamento em separado dos ovos limpos de ninho dos demais ovos ao longo de todas as etapas de incubação, com atenção especial à etapa de vacinação in ovo que pode ser um ponto de contaminação cruzada no processo.
A qualidade da cama no matrizeiro é um ponto importante a ser observado pois pode influenciar na contaminação microbiológica dos ovos, especialmente os ovos de cama. Um manejo adequado da cama deve ser implantado a fim de que haja aeração do material da cama, para que a cama libere o excesso de umidade, além de evitar o aumento da pressão de infecção por agentes entéricos. Algumas estratégias que podemos citar são o revolvimento da cama, que evita a formação de crostas e renova a capacidade absortiva do material e a aplicação de produtos com o intuito de modular a microbiota da cama e/ou seu pH (acidificação ou alcalinização).
Por último, mas não menos importante, deve-se avaliar a necessidade de ajuste no programa preventivo via ração com vistas à qualidade intestinal. Em geral, quando da retirada de APC da etapa de terminação, o mesmo movimento ocorre na etapa de reprodução, ou até mesmo antes. Seja qual for o caso, ou mesmo com a manutenção no uso de APC, é necessária uma atenção especial à qualidade intestinal de forma a evitar consequências negativas devido a contaminação de ovos ou mesmo qualidade ruim da cama pois ambos são impactados diretamente pela condição entérica do lote.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estabelecimento de um programa de uso prudente de antibióticos na cadeia avícola depende de uma série de fatores para que seja definido e implantado. O primeiro passo é estabelecer os objetivos dentro do programa e a abordagem a ser adotada (neste texto utilizamos a abordagem da OMS, mas outras orientações podem ser utilizadas). Em seguida, é necessária uma preparação da cadeia produtiva para a implantação de eventuais retiradas ou reduções no uso de antibióticos e a implantação das estratégias em si. Eventuais correções de rumo são esperadas e devem ocorrer sempre que for identificado algum desvio no planejamento proposto.
Adicionalmente, deve-se estruturar um painel de indicadores para monitorar o atingimento dos objetivos propostos. Tais painéis, em geral, contemplam indicadores diretos do uso de antibióticos como, por exemplo, mg de princípio ativo utilizado por kg de peso vivo abatido (mg/kg) e percentual de aves ou lotes que receberam antibiótico, além da segregação destes indicadores conforme o tipo de uso (APC, tratamento, controle e prevenção).
Fonte: Revista do AviSite
Autor: Ricardo Hummes Rauber